Jesus de Nazaré porque te chamamos de tantos modos?

Quem é este?
Mt 21,10

… era a pergunta que mais se sentia dentro ou fora de cada cidade, de cada Olhar, ao escutá-lo, acompanhá-lo, uns encantados outros incomodados.

Começou por ser o Jesus, filho de José e, saindo do seu povoado em busca de trabalho era o Jesus, o de Nazaré, um “tekton” (trabalhador especializado em construções)
Mas, aos poucos, tal como acontece com as pessoas que amamos e vamos conhecendo ele foi-se tornando para nós muito mais… e surge a necessidade de dizer quem ele é, e dizê-lo da melhor maneira possível.
Quem é ele para nós?
Quem somos nós para ele?
Com que nomes entra ele na minha vida, na minha história?
Com que nomes e autoridade entra ele na nossa História?
Qual o jeito com que o chamamos?

E tem sido grande esta caminhada desde aquele tempo em que ele era somente o Yeshuah, filho de José, o de Nazaré…

Como o dizemos, o chamamos, na nossa vida, hoje?... É uma pergunta para deixar no ar…

Aqueles que nos transmitiram “o que dele viram e ouviram” chamaram-no de
O Filho do Homem
O Filho de Deus
O Filho e Servo Amado de Deus
O Senhor
O Messias
O Sumo Sacerdote
A Palavra, a Verdade, Eu-Aggelion… a Boa Notícia

Irei tentar deixar por aqui pequenas partilhas sobre a beleza de dizer Jesus assim.

O Filho do Homem

Filho do Homem é uma expressão que pode significar
- SER HUMANO, Filho da Humanidade… ser individual ou colectivo.
- DIGNIDADE, Título, quase como a remeter para uma missão

Encontramos esta expressão no Antigo Testamento inúmeras vezes no livro de Ezequiel, na maneira como Deus se dirige ao profeta, que é o mesmo que dirigir-se a todo o todo o povo de Israel.
“Filho de Homem, todas as palavras que Eu te disser, guarda-as no teu Coração, escuta-as com toda a atenção.” Ez 3,10

Também encontramos a mesma expressão no livro de Daniel.
“… das nuvens do céu vinha como que um Filho do Homem. Dirigiu-se ao Ancião e foi levado à sua presença. A ele foi dado império, honra e reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. O seu império é um império eterno, que nunca passará, e o seu reino jamais será destruído.” Dn 7,13

O Filho do Homem é aquele que se espera vir da parte de Deus, é aquele que há-de restaurar o Reino, é aquele que nele reinará… um Reino e um Reinado que nada nem ninguém poderá derrubar jamais.

É, sem dúvida, uma belíssima expressão… das melhores para dizer Jesus porque fala dele como homem terreno, atrevo-me a dizer: Esta expressão diz que Jesus nasceu do ventre de uma mulher, fruto do amor entre um homem e uma mulher… é plenamente humano (“… o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” Mt 8,20), teve uma história onde viveu e agiu na nossa História (“Aquele que semeia a boa semente é o Filho do Homem” Mt 13,37; “o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar os pecados.” Mc 2,10; “O Filho do Homem até do sábado é Senhor” Mc 2,22), e ao mesmo tempo fala dele como homem que sofre e é ressuscitado por Deus (“o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias” Mc 8,31) dando-lhe uma dignidade de Juiz… o que a-justa, ajustador, não de contas, mas o que ajusta, acerta todos a si (“o Filho do Homem há-de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um conforme o seu procedimento” Mt 16,27)

Nesta única expressão Filho do Homem estão unidos dois contrários, coisa desconcertante demais para nós…
… nesta expressão estão impressos
o poder pelo fracasso,
a dignidade pela vergonha,
a vida pela caducidade,
a vitória pela derrota.
Esta é a autoridade que lhe vem do Alto… do alto da sua mais profunda e plena humanidade, um ser humano tão humano assim é alguém tão próximo de Deus que é Um com Ele. É assim que ele, Um com Deus pode julgar, a-justar, porque não o faz “de cima” ou “de fora”… mas a partir do próprio centro de toda a humanidade.

Filhos do Homem, filhos da Humanidade somos todos nós, mas O Filho do Homem é Jesus.
É ele O ser Humano por excelência que Deus assumiu e fez Seu para no-lo dar.
Um dos nossos… um de nós tornou-se O Filho da Humanidade, O Filho do Homem.

E, em vez de ser este título a dizer quem é Jesus… é Jesus que diz o que é ser Filho da Humanidade em plenitude, em total verdade.

Só poderia terminar esta partilha com a frase de Leonardo Boff.
“Humano assim só pode ser Deus mesmo.”

Deus está mesmo completamente metido “nisto”… é por isso que a próxima partilha só pode ser sobre a expressão “Filho de Deus… Filho Amado…”

O Filho de Deus

Se agora eu perguntasse:
“Se Jesus é O Filho de Deus, então concluímos que…?”




Então a primeira resposta que nos poderia surgir seria:
“Se Jesus é O Filho de Deus, então Jesus é Deus.”

MAS…

Mas a intenção primeira daqueles que atribuíram a Jesus esta expressão, este nome, não era exactamente e só esta resposta, mas sim:
“Se Jesus é O Filho de Deus,
então Deus é o Pai de Jesus!”
Uma resposta, um jeito de pensar e falar de Jesus bastante diferente.

Dizer que Jesus é O Filho de Deus é muito mais do que lhe atribuir um título de dignidade máxima…
Dizer que Jesus é O Filho de Deus é revelar uma relação entre duas pessoas. Uma relação absolutamente única que Jesus foi constituindo com Deus, enquanto O acolhia também de Coração totalmente aberto e totalmente disponível a tudo o que intuía de Deus e da lógica da Família deste Deus.
Dizer que Jesus é O Filho de Deus é proclamar que este homem não é um homem vulgar, e também não é um homem extraordinário… é outra coisa…
Dizer que Jesus é O Filho de Deus é afirmar que hoje já não se pode falar de Jesus sem falar no Reino/Família de Deus e no Rei deste Reino… tal como também já não se pode falar de Deus sem dizer quem é o Filho d’Ele. Tal como um filho é “a cara chapada” do pai… Jesus é todo Filho, é a cara do Pai-Deus. Jesus é o rosto de Deus!

Tendo em conta a cultura da época, dizer que Jesus é O Filho de Deus é um escândalo para os judeus porque estes, tendo fé num só Deus, não conseguiam concebê-l’O como Família de Pessoas. Um judeu fiel não acredita que Deus possa gerar ou atribuir características da Sua própria divindade a seres humanos…
… daí o escândalo, no judaísmo, a blasfémia máxima, e que foi a causa de condenação à morte de Jesus esta afirmação da relação Pai-Filho em Jesus com o seu Deus.

Paulo, em determinada altura vê a Comunidade dos discípulos de Jesus em Corinto com discussões e divisões, porque uns gostavam mais da pregação deste, outros gostavam mais da pregação de outro, porque este sabia mais, porque o outro tinha mais jeito para o anúncio, porque o outro era mais legítimo… Paulo aborreceu-se a valer com isto e escreve-lhes:
“Enquanto os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca da sabedoria, nós pregamos um Messias crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios.
Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e sabedoria de Deus.
Portanto, o que é tido como loucura de Deus, é mais sábio que os homens, e o que é tido como fraqueza de Deus, é mais forte que os homens (…)
… o que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios, e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte.”
1Cor1,22-24.27

Os judeus perdem-se a olham para o céu, os gregos perdem-se a olhar para a sabedoria que é tão efémera e volúvel como água entre os dedos… mas a Família de Deus é outra coisa… é outra coisa… o anúncio desconcertante é sempre: “O primeiro a ser levantado da morte, o que foi erguido da morte por Deus e por isso está vivo é o crucificado!”

Este é o anúncio absolutamente louco, sem lógica nenhuma para a cultura grega.
Nestes tempos das primeiras comunidades de discípulos de Jesus, os gregos que acreditavam em muitos deuses, acreditavam também na existência de “filhos de deuses”… bastava ser uma pessoa com capacidades fora do comum, ou ser rei e poderia ser considerada filho de um deus. Era uma expressão bastante comum na época.
Estes filhos de deuses recebiam deles os seus poderes divinos, tornam-se assim pessoas divinas também.
Ora, um homem como Jesus certamente humanamente extraordinário até poderia ser considerado pelos gregos como um “filho de um deus”, mas o que nunca encaixaria, o que nunca faria sentido era existir o facto vergonhoso, desonroso de uma condenação à morte… e por crucifixão.
Infelizmente, neste aspecto, herdámos muito desta maneira de pensar, porque na mentalidade grega seria um absurdo um filho de deuses sofrer e morrer desta maneira uma vez que lhe tinham sido dados poderes sobrenaturais/divinos.
Jesus, O Filho de Deus, é então uma loucura para os gregos, romanos, egípcios, etc…

Por mais que até soe estranho a alguns de nós isto tem que ser mesmo verdade.
Porque a Jesus, O Filho de Deus, a tortura e o assassínio doeram-lhe mesmo, ele não poderia estar a “fazer de conta” que estava a sofrer (desculpem as expressões).
A humanidade de Jesus é autêntica, nunca é aparente, e é inconcebível olhar para Jesus e dizer que ele é uma parte disto e uma parte daquilo, inteiramente isto e inteiramente aquilo, sem mais, porque estaria a ser desonesto connosco, e seria um bocado extraterrestre (que é o nome que damos a todas as criaturas que não são totalmente terrenas) (e desculpem outra vez a expressão).
Jesus é plenamente humano, é o primeiro a ser com absoluta verdade quem é… pessoa humana… por isso pode ser gerado na Família de Deus, porque é como Deus é.
Deus é absolutamente quem é em plenitude máxima, algo que nunca acabamos de descobrir… um Deus surpreendentemente que nunca mais acaba de Se revelar e de Se dar, mas que é absolutamente quem é.

Todos somos Filhos e Filhas de Deus… mas Jesus é O Filho de Deus, que já faz parte da Família de Deus enquanto nós, unidos ao Filho, formamos Corpo com ele, já fazemos parte da Família mas ainda estamos a caminho de ser plenamente o que somos… um só com o Filho da Família/Reino de Deus.

É um pouco desta linguagem que surge a elaboração dos relatos da infância de Jesus surgidos das primeiras comunidades de discípulos que proclamavam Jesus como Filho de Deus, o Primeiro de nós a nascer na Família/Reino de Deus. Fica mais clara a nossa leitura dos evangelhos se assumirmos desde o início da leitura que ali estão a falar de Jesus ressuscitado, desde a primeira página.

A próxima partilha será sobre o nome de Servo de Deus, Sofredor…
… Cordeiro de Deus.

Termino com a frase de Jon Sobrino que já coloquei por aqui há tempos.

“Depois da ressurreição de Jesus,
Deus já não actua sem Jesus,
Deus já não pode ser pensado sem Jesus,
Deus não é sem Jesus,
Jesus pertence à realidade de Deus.

Servo de Deus



“Eis o meu servo, que Eu amparo, o Meu eleito, que Eu preferi. Fiz repousar sobre ele o Meu espírito...”
Is 42,1

“Uma vez baptizado, Jesus saiu da água e eis que se rasgaram os céus, e viu o Espírito de Deus descer como uma pomba e vir sobre Ele. E uma voz vinda do Céu dizia: «Este é o Meu Filho muito amado, em quem Me alegro.»”
Mt 3,17

É bem evidente nestas passagens como estavam unidas as expressões de Filho Amado de Deus, Servo e Eleito… o preferido, o escolhido para fazer repousar sobre ele o Seu próprio Espírito.
Este modo de ver Jesus como “Servo” é algo que talvez nos desconcerte mas é característica muito presente nas primeiras comunidades de discípulos de Jesus.

“… o Deus dos nossos pais, glorificou o seu servo Jesus, que vós entregastes e negastes na presença de Pilatos…”
Act 3,13
“… Foi primeiramente para vós que Deus suscitou o seu Servo e o enviou para vos abençoar e para se afastar cada um de vós das suas más acções”
Act 3,16
“… concede aos teus servos poderem anunciar a tua palavra com todo o desassombro, estendendo a tua mão para se operarem curas, milagres e prodígios, em nome do teu Santo Servo Jesus…”
Act 4,29-30

No entanto foi desaparecendo este jeito de dizer Jesus porque é sempre difícil a tensão existente entre este homem que, sendo filho não poderia ser servo, ou se era servo jamais poderia ser filho.
Encontrar no homem Jesus a coexistência da dignidade de Filho e o sofrimento de um Servo era muito difícil de conceber. Há sempre a tendência inconsciente para apagar a memória da dimensão do sofrimento e morte de quem já foi exaltado.

Mas hoje, como em todos os tempos, chamar Jesus de “Servo de Deus” é deixá-lo entrar e participar no mundo de todos aqueles que sofrem hoje, todos os que de alguma maneira hoje são os “crucificados”. Estes têm Alguém sobre quem podem repousar o olhar… um crucificado Ressuscitado, erguido do “chão” pelo próprio Deus.

E em que consiste este ser servo, cordeiro pronto para o matadouro, vítima, segundo o Novo Testamento?
Significa uma Eleição, uma Missão e um Destino.

O texto de maior importância que refere tudo isto é um hino que segundo dizem é mesmo anterior a Paulo.
Deixo-o aqui numa tradução livre:

“Cristo Jesus, que vivia como imagem de Deus,
não se preocupou em ser considerado como igual a Deus;
mas esvaziou-se a si mesmo,
tomando a condição de servo.
Tornando-se semelhante aos seres humanos
e visto como ser humano,
humilhou-se a si próprio,
fazendo-se obediente até à morte
e morte de cruz.

Por isso também Deus o exaltou acima de tudo
e lhe concedeu o nome acima de todo o nome
para que no nome de Jesus,
todos o joelho se dobre,
os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra
e toda a língua confesse que é Senhor, Jesus Cristo,
para glória de Deus Pai.”

Fil 2, 6-11

É belíssimo este hino que fala de Jesus como o Messias esperado que é de condição divina, não de forma filosófica mas pelo extraordinário acolhimento do que Deus faz actuar nele, manifestando em si próprio, de maneira plena, a dimensão divina do ser humano.
Jesus podia ter andado a “dar ares” de divino, mas decidiu não o fazer. Isto aparece-nos bastante claro nos relatos das tentações.

Enquanto nós fomos criados À imagem e semelhança de Deus,
Jesus É a imagem de Deus…
… mas “despe-se” desta condição extraordinária e adopta outra condição, a de escravo.
Jesus acolhe a condição mais frágil que pode existir no ser humano, e é nisto que é semelhante a assumir uma “carne pecadora” (Rom 8,3) pois sabemos como o pecado é o que mais anula o ser humano e o rosto de Deus no ser humano.

O sofrimento de Jesus “apanha”, atrai a si, assim, todos os sofredores, vítimas de qualquer sofrimento de todos os tempos com autoridade para os poder resgatar, salvar, abraçar na Família/Reino de Deus.

O Senhor

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As primeiras comunidades de discípulos de Jesus, desde cedo, foram intuindo que o nazareno Jesus não era apenas aquele que foi crucificado e levantado da morte pela mão de Deus… para eles já era mais que isto.
Sentiram necessidade de afirmar que o nazareno Jesus, por causa da sua vida e da confirmação plena por parte de Deus, é aquele que tem autoridade e poder… é o Senhor, não existe nenhum outro Senhor como ele.

Afirmam então a presença viva e actuante de Jesus vivo na comunidade de discípulos.
Afirmam então a presença viva e actuante de Jesus vivo em tudo o que existe.
Afirmam então a relação única e íntima dos discípulos com Jesus.
Afirmam então a relação única e íntima entre o nazareno ressuscitado e o próprio Deus, e tal como Deus está a “trabalhar”, a actuar em tudo o que existe, também o Senhor, o nazareno ressuscitado continua a trabalhar e a actuar em tudo o que existe porque ele é UM com Deus.

Dizê-lo “Senhor”, hoje, é designar ou significar a nossa relação/atitude diante dele?
Ou seja… Dizê-lo “Senhor” será atribuir-lhe ou reconhecer-lhe um título de merecimento ou será afirmar quem ele é na nossa vida, na nossa humanidade, em tudo o que existe?

A expressão “Senhor” aparece muitas vezes, nos Evangelhos, nos relatos de seguimento.
Dizê-lo “Senhor” desta maneira é como ver nele a autoridade para escolher e chamar discípulos para que o sigam (numa cultura em que normalmente acontecia o contrário, ou seja, aquele que queria tornar-se discípulo é que escolhia para si um rabi, um mestre, um sábio. Com Jesus, já sabemos, estas lógicas e atitudes são sempre totalmente diferentes)
E seguem-no porque nele encontram sentido e missão para as suas vidas.

Este título dado a Jesus poderá ter naturalmente influências da época. Aqueles que sofriam (a grande parte do povo) esperavam uma salvação, esperavam um salvador… E isto esperava-se de quem detinha o poder sobre o povo. Só de quem tinha algum poder é que se podia esperar alguma mudança, alguma esperança.
Entre os romanos e os gregos, “Senhor” diz-se com a expressão Kyrios e é um título atribuído ao imperador e às divindades pagãs, então, as primeiras comunidades de discípulos de Jesus começaram a sentir que estes títulos máximos só tinham sentido nas suas vidas aplicados ao nazareno ressuscitado.
Temos hoje escritos destes tempos em que os cristãos eram forçados a confessar “Kyrios César” e a renegar a Cristo. Muitos cristãos foram martirizados porque se recusaram a negar Jesus desta maneira. Porque seria isto tão incómodo para os romanos ou escandaloso para os gregos?
Porque seria tão incómodo afirmar como “Senhor” a um nazareno diante do imperador romano?
E ninguém que me lê será ingénuo ao ponto de não concordar que hoje temos muitos “Césares” em tudo o que existe. Porque é que quem se diz cristão, hoje e agora, já incomoda tão pouco diante dos “Césares” que se apresentam diante de nós?

É que não era mero capricho de chamar nomes bonitos a este ou àquele. Há muito mais aqui em jogo.
Dizer “Kyrios Iesous” (Senhor Jesus) resultava em conflito e perigo porque este senhorio era afirmado com atitudes, sinais e gestos concretos de justiça, fundamentais para tornar presente o Reino de Deus (missão fundamental de todo o discípulo de Jesus). E aqui era preciso “lutar” contra todos os Senhores que quisessem ocupar o lugar do Senhor Jesus, nas vidas de todos.
E cito Jon Sobrino que o diz bem melhor que eu:
“… o conflitivo não é o título, proclamando publicamente Jesus como Kyrios, mas comportar-se social e eticamente de acordo com Jesus de Nazaré. Isso mostra o próprio facto de que mesmo antes do uso público – e provocador – do Kyrios, os cristãos tenham sofrido perseguição no seio das famílias e dentro do seu próprio povo judeu. Só depois vieram ataques e perseguições dos poderes políticos romanos.”
e diz ainda R. Aguirre:
“… uma atitude cristã coerente há-de manter sempre uma certa capacidade crítica para com o seu meio social e não deverá estranhar por ter que assumir o conflito.”

Mas, ao mesmo tempo que deverá ser, no concreto dos dias de todos os discípulos de Jesus, uma afirmação conflictiva, é também uma afirmação de esperança. É o sinal forte de que nenhum poderio nos poderá esmagar debaixo dos seus pesos.
É que este Senhorio, este poder, esta autoridade que reconhecemos no Senhor Jesus não é imposição, é antes um mostrar claramente qual o caminho para agir de um jeito que sirva para construir comunidade. É em comunidade, com líderes carismaticamente reconhecidos, que os discípulos de Jesus vão intuindo esta inspiração e capacitação para se irem configurando (tomando o mesmo olhar, o mesmo rosto, as mesmas atitudes, o mesmo fervor) de Jesus.

Proclamar Jesus como “Senhor” é dizer que o seu Senhorio, na História, não é exercido por nenhuma comunidade, nem mesmo pela Igreja como instituição… só Jesus é o Senhor. É por este motivo que, até mesmo dentro da Igreja/instituição pode haver conflitos resultantes das tantas formas de afirmar que só Jesus é o Senhor.

Jesus é o Senhor, não ao jeito dos senhorios que conhecemos, é antes o escândalo do Senhor que serve, e do Senhor que serve ao ponto de ser crucificado… os evangelhos dizem-nos então que não é qualquer um que é Senhor, mas sim aquele que se baixa para “lavar os pés”.
O seu poder não se impõe, não desfigura, nem desumaniza… pelo contrário. Não manipula a História, antes vai inspirando nos seus discípulos atitudes concretas de justiça a assumir… dando já vida deste modo. E não só inspira mas está presente em tudo o que existe através dos seus discípulos de todos os tempos, ficando assim como que entregue a eles.
Diz ainda Jon Sobrino: “Comunidade, Igreja e mundo não são só apenas lugares de presença de Cristo, mas sacramentos da sua realidade e instrumentos da sua actividade”, ainda que a iniciativa seja sempre do Espírito que anima todo o corpo que os discípulos formam com Jesus/Cabeça deste corpo.
É a grande comunidade de discípulos de Jesus que pode fazer este Espírito gerar frutos de justiça e esperança. É o concreto das nossas vidas que afirma o Senhorio de Cristo.

Deixo a pergunta no ar…
No centro das nossas vidas e em tudo o que fazemos, aí Jesus é o Senhor?

e deixo também este Senhorio dito e vivido por Paulo…
1Cor 7,22: “O escravo que, no Senhor, foi chamado, é um liberto do Senhor, tal como o livre que foi chamado, é escravo do Senhor.”

1Cor 9,1: “Não sou eu, porventura, livre? Não sou apóstolo? Não vi Jesus, nosso Senhor? Acaso, não sois fruto do meu trabalho, no Senhor? Se para outros não sou apóstolo, certamente o sou para vós; porque vós sois o selo do meu apostolado, no Senhor.”

Fl 3,1; 4,1-4: “Alegrai-vos, no Senhor (…) Sede firmes, no Senhor”

1Ts 5,12: “Pedimo-vos, irmãos, que respeitem aqueles que trabalham entre vós, ou seja, aqueles que no Senhor vos ensinam e vos guiam. Tratem-nos com o maior respeito e amor, por causa do trabalho que fazem.”

Rom 14,8: “Se vivemos, é para o Senhor que vivemos; e, se morremos, também é para o Senhor que morremos. Assim, tanto se vivermos como morremos, somos do Senhor. Pois Cristo morreu e viveu de novo para ser o Senhor tanto dos mortos como dos vivos.”
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Sumo-Sacerdote


Sumo-sacerdote é daquelas expressões que não fazem mesmo parte do nosso vocabulário de hoje. Mas, se as primeiras comunidades de discípulos de Jesus sentiram tanta vontade de expressar com esta expressão o jeito especial com que ele continua presente na vida de cada um, de um modo absolutamente novo, então é importante que também nós, discípulos de hoje, percebamos a profundidade desta expressão que deram ao nazareno ressuscitado.

Esta proclamação de Jesus como Sumo-sacerdote aparece na Carta aos Hebreus. Mesmo sem saber quem será o autor desta carta, sabemos certamente que será um escrito nascido no seio de uma comunidade de discípulos de Jesus, com raízes profundamente judias, cujos destinatários serão judeus que se foram tornando discípulos de Jesus.

Será bom então perceber o que é um Sumo-sacerdote segundo a fé hebraica, esta mesma fé na qual o próprio Jesus nasceu, aprendeu, que ele acolheu e viveu tão intensamente que foi esta fé do seu povo que se tornou no ponto de partida fundamental para o colocar de Coração aberto, disponível, em profunda comunhão com o Abba.

Sabemos como é comum a todos os seres humanos a profunda necessidade de Salvação, de Libertação, de toda a opressão que adquire tantas formas.
Todo o ser humano sente uma imensa fome de HUMANIZAÇÃO.
Além disso, existe também o desejo profundo de “tocar” Deus, de encurtar essa imensa distância que nos separa d’Ele, de tal modo que até possa ser possível nos unirmos a Ele…
Todo o ser humano sente uma imensa fome de DEIFICAÇÃO. (desejo de sermos UM, de sermos uma Comunhão com Deus)

Para que aconteça esta Libertação e Salvação e este caminho de união com Deus tornou-se necessário encontrar um mediador, um Sacerdote.
Como faz ele acontecer a Libertação e aproximação a Deus?
Através de sinais, rituais, que nos coloquem em sintonia com Deus e nos purifiquem para que nos tornemos dignos da Salvação e da nossa aproximação a Deus.
O Templo é o lugar onde o Sacerdote exerce os sinais e os rituais. Dentro dele está o lugar “Santo dos Santos” e aí está a arca da aliança, Dentro da arca está o maná e as tábuas da lei dada por Moisés, sinais fortes da experiência redentora e libertadora da opressão do Egipto.
No Templo havia também o altar que, como em tantas outras religiões, servia para sacrificar animais. Era preciso oferecer o sangue de bois, cabritos, pombas, para acalmar as fúrias de um Deus que “se passa” de cada vez que nos portamos mal.
O Sacerdote fazia isto por si e por todo o povo, sacrificava animais e oferecia incenso no altar em troca da Paz, do Perdão e Bênçãos de Deus.
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Mas, ao Deus de vivos e não de mortos, sempre disseram os profetas que não Lhe agradavam o sangue de bois e cabritos, mas sim um Coração humilde, dócil, gratuito… Denunciam e anunciam os profetas de todos os tempos ser este o verdadeiro culto que Lhe agrada.

Dizer que Jesus é O Sumo-sacerdote é proclamar que, na verdade, ele é o Único e verdadeiro mediador entre Deus e os seres humanos. Pela maneira com acolheu Deus inteiro e a Sua Família, pelo modo como se foi tornando Um com Deus, pelo facto de ser autenticamente um de nós, ele é o único e verdadeiro mediador, o único e verdadeiro sacerdote.
Dizer Jesus como um mediador/sacerdote/salvador ao jeito dos “tempos antigos” é dizer pouco. É que a vida e a missão de Jesus dizem-nos também como não estamos sozinhos na procura deste Deus, enquanto Ele fica à nossa espera num trono qualquer muito divinal.
O olhar, o toque, a palavra, o silêncio, o caminhar, o sangue derramado, a vida inteira deste que se foi gerando Filho… que chama a Deus de Pai por se sentir todo saído d’Ele, tudo isto nos diz de tantos modos como o próprio Deus está também Ele a caminho, à nossa procura, ao nosso encontro, enquanto deseja tanto ir-Se dando a conhecer.

Que notícia tão boa esta de um Deus, tão amante, tão zeloso, tão pai, que “não Se aguenta”, não Se segura quieto… tem fome de justiça, tem fome de nos (a)just(ar) a Ele de maneira absolutamente gratuita, e a partir do meio, do centro de nós.

E só os olhos dos que “falam” a mesma língua deste Deus, que “sofrem” esta mesma fome de (a)just(e) é que sabem caminhar verdadeiramente ao Seu encontro, e que acolhem o Seu abraço que corre ao nosso encontro.

Ah!... E o modo como Jesus se foi gerando filho é absolutamente espantoso…
Ele dizia que não estava ali pelos que não sentiam necessidade de cura, de Salvação, mas sim por todos aqueles que precisavam de “médico” (Mc 2,17). Deus toma partido, tal como o Filho gerado também toma partido pelos que têm fome de ser salvos.

Que Deus é este que ao longo de toda a História, cheia de todas as nossas pequenas grandes Histórias que vamos construindo e destruindo, Ele derruba qualquer muro que teimemos construir para nos separar d’Ele, quando tantas vezes Ele é para nós o Puro, e nós os Sujos, indignos da Sua Presença?!
Que Deus é este que teima em caminhar ao nosso encontro, ao mesmo tempo que se coloca do nosso lado, não nos deixando sós nesta caminhada ao encontro d’Ele?!
Que Deus é este que escapa de todos o “Templos” fechados que teimamos continuar a construir, e rebenta todas as caixas douradas nas quais ainda O queremos fechar?!
Que Deus é este que, sendo o nosso Criador, sem Se impor, Se faz silenciosamente presente, ainda que não Lhe concedamos o espaço que é tão d’Ele na nossa vida de todos os dias, sim, também desses dias em que não estamos dentro de nenhum lugar sagrado a cumprir um ritual qualquer. Deus, o Pai, está.

É que Jesus, aquele que foi gerado Filho, não se tornou mediador separando-se do mundo, como fazem os “fariseus” (separados) de todos os tempos, e não oferece o “sacrifício”, o sangue, de algo fora de si próprio (bois e cabritos), mas dá-se inteiro ele mesmo, com o seu próprio Sangue que, tal como sabemos da cultura judaica, falar do Sangue, é falar da vida inteira, completa, da pessoa.
E o modo como Jesus morreu e derramou o Sangue, derramou a Vida, diz como isso foi a consequência da sua fidelidade e amor à verdade do seu Pai e da Família do seu Pai.

Já que estamos no chamado Ano Sacerdotal, aproveito para dizer como é quase “pecado” chamar alguém em particular de sacerdote. Se quisermos chamar assim alguém, então chamemos assim todos aqueles e aquelas, todas as comunidades também que, unidos a Jesus, são com ele mediadores do Deus que Se faz próximo e em direcção a Quem é possível caminhar… o Deus que Salva, Ama, Consola, Cura.
Jesus é O mediador por excelência deste Deus, em primeiro lugar porque é humano, e não porque lhe tenha sido atribuído um serviço ou um cargo… nem mesmo porque lhe tenha sido atribuído um título. Sabemos bem como Jesus não tinha nenhum cargo no Templo de Jerusalém, nem em nenhuma Sinagoga… e bem sabemos como denunciava toda a lógica que estava debaixo desse culto…

Os discípulos de Jesus vêem como…
… já não há o lugar do “Santo dos Santos”, o véu que o separava do povo foi “rasgado” pelo nazareno ressuscitado.
… já não há altar, foi quebrado esse lugar onde se sacrificavam vítimas animais, nem sacerdotes para realizar esse ritual por si próprio e por todo o povo, porque o nazareno ressuscitado já entregou a sua vida inteira com todas as decisões, compromissos, anúncio, denúncias e comunhão com Deus. E com ele, o único e verdadeiro sacerdote, todos somos já salvos.

E de tantos novos símbolos possíveis, neste tempo novo, de aliança nova, Jesus escolhe
… uma mesa onde todos têm lugar
… um único pão que chega para todos porque se parte e se partilha e sacia todas as fomes
… um único copo de vinho que por todos passa como quem bebe da mesma cor, da mesma alegria da festa
… uma bacia de água, o serviço que nos faz lavar os pés uns aos outros, um serviço, um ministério de todos, para todos, com todos




Yeshuah de Nazaré… verdadeiramente és O Sacerdote, verdadeiramente és o Único Sacerdote…
Faz-nos um contigo, tu que és a Porta que queremos atravessar para nos encontrarmos com o teu Pai e nosso Pai…
Faz-nos um contigo, tu que és a Porta que Deus escolheu para atravessar, para Se encontrar verdadeiramente connosco.
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O Ungido... O Messias... O Cristo

Na fé hebraica do nosso Antigo Testamento só os reis e os sacerdotes eram ungidos de forma muito especial.
A unção era o ritual, o sinal marcado sobre o eleito por Deus que o nomeava para uma missão.
Para a unção era usado o óleo extraído da azeitona, o azeite.
A oliveira desde sempre foi apreciada por muitos povos, era uma árvore comum na Palestina. É incrível como chega a viver centenas, até milhares de anos.
Depois de prensado o fruto obtém-se um óleo precioso pela riqueza das suas propriedades.

O azeite é usado já pelos povos antigos para iluminar, com as lamparinas e as candeias.
É usado também para tratar das feridas, para aliviar as dores e acelerar a cicatrização.
As grandes propriedades deste óleo são as de Iluminar e de Acalmar as dores das Feridas.

Derramar este óleo como sinal sobre a cabeça de um eleito de Deus, ungir os pés de um importante hóspede ou ungir todo o corpo (por exemplo, dos defuntos) queria significar muito.

Iluminar e Sarar.

Podemos agora começar a entender melhor o alcance que tem a expressão “Ungido”.

Ao longo de toda a nossa História à procura de Luz e Cura quisemos encontrar o rosto de alguém, de um de nós, um líder que fosse capaz de nos iluminar o Caminho em direcção a uma Terra Justa, um lugar onde só a lógica de Deus reinasse.

Quisemos encontrar o rosto de alguém, de um de nós, um líder que fosse capaz de sarar as feridas que vamos umas vezes provocando, outras vezes sofrendo ao longo deste longo caminhar.

É disto que fala o Antigo Testamento… canta de tantas maneiras a procura cheia de esperança de um povo à procura de um rosto dos nossos, com uma missão da parte de Deus, que tivesse a ousadia de apontar o Caminho que sai da opressão de todos os “Egiptos”.

Um líder.

De quem se poderia esperar esta liderança senão de um rei, ou da mediação de algum sacerdote?
Depois de muito caminhar, o povo da esperança, desesperou de tantos reis e mediadores incapazes e infiéis no cumprimento da promessa sonhada, esperada, feita Aliança entre Deus e o Seu povo.

O Ungido de Deus passou a ser um rosto demasiado perfeito para ser possível, aquele que haveria de aparecer um dia, para apontar o caminho em direcção a uma utopia, um mundo demasiado perfeito para ser possível de existir.

Hoje, só as gentes que são “os restos” do mundo “civilizado”, e a grande maioria, é que sabe o que é esperar o impossível, esperar o líder que estabeleça finalmente a justiça.

O mundo que se diz “civilizado” já não precisa de um salvador, porque não sente necessidade de ser salvo, e só consegue colocar a miséria e a pobreza daquele que chamamos Terceiro Mundo, bem longe dos olhos, bem longe do Coração… sem nome e sem rosto e por isso sem compromisso da nossa parte.

Fomos, ao longo da História, fixando-nos demasiado na mão e no “dedo” do Ungido de Deus, de tal maneira que nos esquecemos já de olhar para onde aponta.

Jesus de Nazaré é uma presença estéril, vazia, na nossa vida se não deixarmos que ele aponte para fora dele próprio.

O Caminho rasgado nas entranhas do Tempo não acaba no nazareno, ele aponta e leva-nos com ele se o seguirmos. Este Jesus é o Primeiro, o já nascido no colo do Abba, ele é o Ungido, o Messias, o Cristo de Deus que aponta o Caminho.

A pergunta NUNCA deveria ser:
“Então, vamos lá ver, quem é Jesus?”
Resposta: “Jesus é Cristo, o Filho de Deus”
MAS SIM: “Quem é o Ungido de Deus, o Messias, como é o rosto do Cristo que esperamos, o Líder que nos libertará de toda a opressão, aquele em quem temos esperança que nos mostre o Caminho da Justiça até ao mundo que iremos construir e onde só Deus-Amor pleno reina?”
Resposta: “O Ungido, esse é Jesus, o de Nazaré!”

É esta pergunta certa e fundamental à qual todo o Novo Testamento responde, como se nele ainda se escutasse o eco, o clamor da pergunta que sempre existirá no Coração de cada ser humano. E o Novo Testamento dá-nos uma resposta.
Temos um rosto, um nome, uma pessoa, um de nós… o Ungido é Jesus.

É curioso como são raras, e nada ao acaso, as expressões hebraicas que foram escritas nos Evangelhos (escritos em grego), como por exemplo, Rabi ou Abba.
Embora a expressão grega - CHRISTOS, surja inúmeras vezes ao longo de todo o Novo Testamento, ela aparece traduzida nas nossas bíblias como Messias, e a verdade é que MESSIAS - expressão hebraica, só aparece literalmente duas vezes, no Evangelho segundo João.

“André encontrou primeiro o seu irmão Simão, e disse-lhe: «Encontrámos o MESSIAS!» é o mesmo que dizer Cristo”
Jo 1,41

“Disse-lhe a mulher samaritana. «Eu sei que o MESSIAS, que é chamado Cristo, vem. E quando vier, há-de anunciar-nos todas as coisas.»”
Jo 4,25

E vejo por estes duas passagens como é fundamental reconhecer, apontar e seguir aquele que acreditamos ser o Ungido, tal como fez André.
E vejo como isto não é coisa de uns poucos que acham que sabem tudo sobre Deus… este Ungido é para todos, também para aquela samaritana, uma “excluída” do povo “eleito” e “santo”, declaradamente “ignorante” pelos povos “sábios” e “civilizados”… e ainda por cima, uma mulher. O que é certo é que esta mulher fez o mesmo que André, reconheceu, apontou, e seguiu este que acreditou ser o Ungido de Deus.
Sentiram que o Caminho era por ali, era por ele.


E como é esse Caminho? Tem alguma coisa de mágico? É a solução milagrosa para todos os males?
Não.
Este Messias de Deus, este Ungido, este esperado desde sempre é o Crucificado, o Assassinado.
Esse crucificado é que é o Messias de Deus.
Porque é assim que se morre quando não se pactua com qualquer lógica de opressão…
Porque é assim que se morre quando se acredita no sonho da esperança:
É possível começar a construir e a viver agora o Reino Humanizado, Feliz, (A)jus(tado) a Deus-Abba-Amor Pleno.

A PALAVRA, A BOA NOTÍCIA

Ainda me lembro de, nos tempos de escola, ter aprendido como a linguagem verbal é um dos mais importantes veículos da comunicação entre pessoas.
É bem verdade que, sem nos apercebermos muito bem disso nós, seres humanos, evoluímos sempre em torno das palavras que se dizem, escrevem, se materializam em mil coisas que fazemos a partir delas.
Tanta Cultura, tanta Sabedoria, tanta Reflexão, tantos Estudos transmitidos através de gerações e gerações… até aquele simples folheto de instruções tão útil (quase sempre na nossa língua também, eheh) que consultamos quando chega a hora de montar aquele objecto que nos chega às mãos desmontado, ou aquela máquina que é preciso pôr a funcionar, sem aquelas preciosas instruções perderíamos muito mais tempo.
Parece que tudo o que fazemos, desde que nos levantamos até que o dia termina está embrulhado em palavras.
Existimos relacionando-nos uns com os outros, em permanente comunicação, e quase sempre, quer seja no emprego nas funções que exercemos, quer seja expressando com os nossos mais íntimos aquilo que vamos sentimos, usamos tantas vezes as palavras para o concretizar.
As palavras metem-se na nossa vida, às vezes com tanta profundidade que não é estranho ouvir:
“O que disseste magoou-me!”
“A notícia que me deram arrasou comigo”
“Aquele boato que espalharam sobre mim quase destruiu a minha carreira profissional”
São palavras que nos “destroem”, que fazem desabar o nosso mundo.
Ou as palavras que nos levantam de novo:
“As palavras que me escreveste naquele dia deram-me tanto ânimo, parece que ganhei nova vida”
É espantosa a força que provoca em nós uma frase:
“Que beleza tens dentro de ti!”
ou
“Já não suporto mais olhar para a tua cara”

As palavras têm o incrível poder de tornar o “ambiente” entre duas pessoas arejado ou poluído, fresco ou irrespirável, animador ou esmagadoramente cruel. Podem revigorar-nos ou encher-nos de revolta.

Já os gregos antigos pensavam muito a sério sobre a força que estava por detrás da palavra. E, acerca dela, chegaram a dizer que por detrás de tudo o que conhecemos havia uma realidade escondida aos nossos olhos, era como que o motor que fazia girar o mundo e era a causa de muitas coisas. Chamavam a essa realidade de Logos.
Era como o ritmo de uma música que, apesar de estar sempre lá, e ser fundamental para estruturar a melodia, o nosso ouvido nem sempre se dá conta da sua presença.

Os judeus antigos também pensavam nisto. Isso revela-se em duas Tradições de pensamento que podemos encontrar no Antigo Testamento.
Deus usou a Palavra para criar o mundo. Podemos ler isso no 1º Capítulo do livro do Génesis, esse poema belíssimo onde o escritor repete: “… e Deus disse:… e foi feito. E Deus viu que era bom!”
Outra Tradição começa a personificar a Palavra dizendo que ela é a Sabedoria de Deus.
“Saí da boca do Altíssimo e como uma nuvem cobri a terra (…)
Entre todas estas coisas busquei um lugar de repouso, e herança onde pudesse habitar.
Então o Criador do universo deu-me as suas ordens,
e aquele que me criou montou a minha tenda.
E disse-me: «Habita em Jacob
e toma Israel como tua herança».
Ele criou-me desde o princípio,
antes de todos os séculos,
e não deixarei de existir até ao fim dos séculos. (…)
Enraizei-me num povo cheio de glória,
na parte do Senhor, no meio da Sua herança.”
Sir 24,3.7-9.12

É espantoso fazer esta caminhada até nos depararmos com o belo e profundo poema, um hino escrito no início do Evangelho Segundo João.
Dezenas de anos depois de Jesus de Nazaré ter morrido e ter ressuscitado, a força da sua vida fez nascer aquelas palavras, talvez já longe de Jerusalém, longe de Israel, no meio da reflexão e vivência fraterna de alguma comunidade de discípulos que as escreveu.
E é assim que começa, como quem desenha um pórtico de entrada espantosamente esculpido, de palavras vivas:

“No Princípio existia a Palavra,
e a Palavra estava com Deus,
e a Palavra era Deus.
Ela estava diante de Deus no Princípio.
Através dela todas as coisas foram feitas;
sem ela nada do que foi feito existiria.
Nela estava a Vida,
e essa Vida era a Luz de todos.
A Luz brilha na escuridão,
e a escuridão não a apagou.
(…)
A verdadeira Luz que a todos dá Luz
estava para chegar ao mundo.
Ela estava no mundo,
e apesar do mundo ter sido feito por ela,
o mundo não a reconheceu.
Veio para o que era seu,
mas os seus não a reconheceram.
Mas, a todos os que a receberam,
deu-lhes autoridade para se tornarem filhos por adopção
gerados por Deus
(…)
A Palavra tornou-se Carne
e montou a sua tenda entre nós.
Vimos a sua glória,
a glória do único Filho gerado
que veio do Pai,
pleno de Graça e Verdade.
(…)
Da sua plenitude
todos recebemos Graça no lugar da graça já dada.
Porque a lei foi dada através de Moisés,
Graça e Verdade vieram através de Jesus Cristo.

Nunca ninguém viu Deus,
mas o único Filho gerado por Ele,
que é Deus e está ao colo do Pai,
esse tornou-O conhecido.”
Jo 1,1-18

E, como não se pode falar destes escritos nascidos da reflexão e vida das primeiras comunidades de discípulos de Jesus, sem ter diante dos olhos toda a História caminhada, recordada, transmitida e escrita do povo de Israel com o seu Deus, então coloco aqui as palavras que já haviam sido escritas sobre o “Princípio”.

“No Princípio, Deus criou os céus e a terra.
A terra não tinha forma e era vazia,
a escuridão cobria a superfície do abismo
e a Ruah de Deus pairava sobre a superfície das águas.
E Deus disse: “Que a Luz seja feita”
E a Luz foi feita.
Deus viu que a Luz era boa, e separou a Luz da escuridão.”
Gn 1,1-4

Dá vontade de imaginar aqueles que, de entre os discípulos de Jesus das primeiras comunidades, tinham o carisma de colocar por escrito esse modo de experimentar as coisas à maneira hebraica, o fervor de uns poucos com sangue e vida judias a correr-lhes nas veias, sangue cheio de uma História caminhada, de um Deus com o seu amado povo… estariam provavelmente sentados à mesma mesa onde momentos antes se havia partilhado o pão com aqueles a quem olhavam nos olhos e chamavam de irmãos e irmãs no mesmo Espírito-Ruah de Deus, tendo o mesmo Pai de Jesus… e começarem a escrever sobre esta Notícia Boa que os queimava por dentro, tanto que não a conseguiam guardar dentro sem a “gritar” em palavras vivas que quebrassem a força e a dureza estática do Tempo.
Verdadeiramente acredito que a Ruah de Deus soprou-lhes ao ouvido do Coração o que haveriam de escrever.
E assim começaram…
“No Princípio…”

Já haviam sido as primeiras letras, as primeiras palavras a ser aprendidas na escola, repetidas vezes sem conta até estarem gravadas na memória… as do Livro do Princípio (Génesis)
Começar a escrever uma notícia nova desta maneira é, para um judeu, quase como voltar ao berço e reaprender, reescrever tudo de novo de maneira nova, para que nunca seja esquecido jamais o caminho percorrido até ali.
Era preciso marcar este Novo Tempo da Humanidade ressuscitada com Cristo como quem fala do Tempo da Nova Criação, inaugurado pelo novo Adão.

“No Princípio existia a Palavra.”
Parece fundamental afirmar o lugar que a Palavra tem na nova Criação, porque em toda a História se vêem, agora, sinais da sua presença.
E a presença desta Palavra traz Vida, uma Vida que é como Luz que nenhuma escuridão consegue anular, abafar ou apagar.
E, se mais adiante, encontramos a frase: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” na boca de Jesus, percebemos bem que é esta Palavra viva.
O poema prossegue, como que a narrar a história desta Palavra que traz em si a Vida e a Luz.
Tal como a Sabedoria dos tempos antigos, a Palavra vem habitar no meio do seu próprio povo, aí monta a sua tenda, e mais que isto, faz-se Carne, faz-se humanidade da mesma Humanidade do seu povo.
Todos aqueles que iriam ler estas palavras iriam entender, cada um a seu modo, a força que nelas traz, tanto judeus como gregos. A Palavra Criadora saída de Deus, a Sabedoria personificada, e também o Logos, tinha-se vestido de Carne, tinha-se feito homem.
E porque esta Palavra é um homem, Jesus de Nazaré, é passível de ser acolhido ou excluído pelos seus.
Aqueles que o acolhem tornam-se com ele Palavra, Vida, Verdade e Caminho, tornam-se filhos adoptivos gerados por Deus. Tornam-se irmãos daquele que está ao colo do Pai. Tornam-se irmãos daquele que é Palavra porque com todo o seu ser diz quem é o Pai.

Mais do que um “veículo de comunicação” entre Deus e aqueles que se deixam gerar por ele como filhos, Jesus é aquele que nos capacita para o acolhermos como Pai, é aquele que reflecte no seu próprio rosto e em toda a sua vida a Luz d’Aquele que o gerou inteiro e plenamente.

E como é que este Jesus-Palavra do Pai O diz?

Jesus fala do seu Pai actuando
- com misericórdia,
- com honestidade,
- em todas as suas opções pelos fracos, pobres e denunciando os opressores
- com a sua fidelidade
- com a sua liberdade para bendizer e maldizer, porque nada pode ser obstáculo para fazer o bem
- com o seu querer o fim da desventura dos pobres e desejando a felicidade dos seus
- no seu acolhimento dos pecadores e excluídos
- com a sua alegria que repetidamente celebra à mesa da refeição
- com os seus sinais e gestos, um jeito modesto de tornar presente, também assim, a dinâmica do Reino de Deus já presente a curar e a libertar
- com a sua confiança num Deus Bom e próximo a quem sente e chama de Pai.

Jesus de Nazaré diz este Pai-Deus com o anúncio do Seu Reino, com a lógica do Seu agir.
Jesus de Nazaré diz este Pai-Deus com a sua Vida Toda, assumindo as consequências de todas as opções e denúncias com que o levaram à morte.
Jesus de Nazaré diz este Pai-Deus com a resposta que recebeu das mãos d’Ele, a resposta que o Pai não sabia calar, a Ressurreição do Filho, confirmando assim e assumindo como Sua, toda a sua vida.

Este homem, esta Palavra de Carne revestida agora de Ressurreição é verdadeiramente uma Boa Notícia.